Minha empatia é uma mentira: reflexões sobre design inclusivo

A imobilidade temporária me fez enxergar o mundo por outras lentes

Andressa Siegel
9 min readAug 15, 2021
Ilustração de mulher com tipóia se olhando no espelho
Ilustra de Eduardo Porceli

Amo o livro Introdução ao Design Inclusivo da Danila Gomes e Manuela Quaresma. Elas trazem uma perspectiva que deveria ser ensinada em cursos e treinamentos de design: o design inclusivo. É sobre projetar do zero pensando em diferenças de uso. Ao atender uma pessoa com deficiência permanente atende a situacional e vice-versa, como a Persona Spectrum, da Microsoft, mostra:

Ilustração que mostra as pessoas com deficiências permanentes, temporárias e situacionais.
Ilustra do Persona Spectrum da Microsoft. Mostra as pessoas com deficiências permanentes, temporárias e situacionais.

São as personas em contextos reais. É o homem carregando bebê no colo, é a mulher operando maquinário em fábrica barulhenta, é a pessoa indo para outro país sem falar a língua.

só que a minha empatia é uma mentira

Eu só consigo ir até um ponto que eu chamo de sensibilidade, simpatia, solidariedade. Não empatia... porque empatia, por mais que você tente, nunca será a vivência do outro.

Eu fiquei 15 dias com o braço direito imobilizado e aprendi muito sobre o quanto os serviços e os produtos não são inclusivos.

Vamos refletir sobre design e o nosso papel como designers?

como tudo começou

Sábado, 29 de Maio de 2021, eu precisava espairecer. Desligar a cabeça e não pensar em nada. Como é de se esperar de alguém vivendo uma pandemia em um país desgovernado, chega um momento que já deu. Peguei minha bike e fui pedalar pelo parque. Só eu, a bike e o ventinho no rosto.

Ilustração de mulher com sua bicicleta
Ilustra de Eduardo Porceli

Perto do fim da primeira volta eu decidi subir uma elevação. Não consegui.

Caí primeiro com o joelho direito, que foi ralando no asfalto, até por fim eu apoiar a mão e parar a queda. A bicicleta de 20 kg caiu em cima de mim. Por sorte, o ciclista que vinha atrás parou antes.

Levantei morrendo de vergonha. Ciclistas perguntaram se eu estava bem. "Tô ótima!", aquele sorriso amarelo. Subi na bike e continuei. Parei um pouco adiante pra ver se eu realmente estava bem. Não estava. Minha legging nova — que eu usei por 30 minutos — estava com um rombo no joelho direito e cheia de sangue. Meu braço direito incomodava, mas não parecia sério.

Voltei pra casa, improvisei uma tipoia com um cachecol, limpei a ferida, coloquei gelo no braço, tomei remédio pra dor e continuei a vida. Horas depois fui tirar o braço da tipoia e eu não conseguia dobrar, era como se tivesse virado pedra.

Então começou minha saga de designer brasileira vivendo uma pandemia em um país desgovernado ainda mais puta da cara com meu braço imobilizado.

“assina aqui, por favor?”

Fui até o hospital especializado em fraturas. Só tinha 3 pessoas na sala de espera e não estavam recebendo casos de COVID-19. Respirei aliviada. Fui até a recepcionista.

"Que especialidade você precisa?", ela perguntou.

"Eu caí de bike e não consigo dobrar o braço", respondi e apontei com a cabeça meu braço direito dobrado junto do peito.

"Ah, você precisa de Ortopedista. Assina aqui pra mim, por favor?". Ela me estendeu uma folha e uma caneta. Eu fiquei olhando e calculando como eu pegaria os dois com uma mão só.

Desisti. Peguei a folha, coloquei no balcão, depois a caneta e fiquei olhando miseravelmente pro papel.

"Moça, eu não vou conseguir assinar. Meu braço não se mexe". Eu sou destra então basicamente tudo que eu faço é com a mão direita.

"Ah, sim! Peraí". Ela deu as costas. Suspirei aliviada achando que ela iria usar a minha digital. Ela voltou com uma prancheta. "Coloca atrás da folha".

Fiquei olhando pra ela e para a prancheta.

Mulher segurando prancheta e caneta

"Eu realmente não consigo assinar com a direita", reforcei.

Ela pensou. "Certo… usa a esquerda e dá só um vistinho".

Tentei escrever com a esquerda, mas se eu escrevi Andressa ou Strogonoff ninguém saberia dizer a diferença.

Ela pediu o pagamento da consulta. Coloquei bolsa no balcão, abri o zíper com uma mão, peguei a carteira, coloquei carteira no balcão, lutei para tirar o cartão da carteira só com uma mão, passei na maquininha, guardei tudo um por um, fui em direção ao recipiente com álcool em gel que tinha no balcão e… como se aperta a embalagem com uma mão só?

A recepcionista viu eu olhando reflexiva pra embalagem de álcool e apertou pra mim enquanto eu deixava a mão esquerda embaixo.

Foto da sala de espera do hospital com o botão de acionar a saída longe da porta
Foto da sala de espera

Na sala de espera para o raio-x descobri que não facilitam tampouco para as pessoas saírem do hospital.

As pessoas acidentadas precisam apertar um botão no canto direito para destravar a porta principal. Porém, a porta tem um tempo x de espera até voltar a se fechar.

Enquanto eu aguardava ser chamada pro raio-x, ajudei um homem de muletas e depois uma senhora de idade. Ambos não conseguiam apertar o botão e então se locomover em tempo hábil para abrir uma porta pesada…

Será que quem projetou pensou no cenário de uso?

Refleti sobre as minhas dificuldades com cada micro interação em um hospital especializado em fraturas. Um hospital que recebe pessoas quebradas diariamente.

Dúvida genuína: por que hospitais de Curitiba não contratam service designers?

eu quero lavar louça 😭

Sou privilegiada. Meu pai além de pacientemente me esperar no carro durante toda a consulta ainda me levou até o apartamento e fez toda a limpeza da casa. Eu me sentia péssima, incapaz. Eu que sempre fui independente e evitava pedir ajuda agora me via em uma posição vulnerável.

Olhei triste para a pilha de louça. O que eu mais odiava fazer durante a pandemia era agora o motivo que me deixava pensando… Quando eu conseguiria lavar de novo sozinha?

Então começou a saga das frustrações:

  • Abri a geladeira. Eu estava morrendo de sede, mas só com a mão esquerda eu não consegui abrir a garrafa.
  • A bateria do celular estava acabando, mas com uma mão só eu não consegui trocar os cabos da fonte e inserir o específico.
  • Depois, descobri que era impossível inserir o fone de ouvido sem ter a direita segurando o notebook.

Fim do dia eu fui abrir uma garrafa de vinho pra relaxar depois do dia triste. Não consegui.

Foto de abridor de rolhas
Foto de Marcelo Leal

A indignação faz as pessoas irem até a fundo no porquê das coisas. Fui atrás para ler do porquê alguns vinhos tem rolha e outros não. Você sabia que é um costume brasileiro por se acreditar que vinhos sem rolha são inferiores?

Anos atrás, um famoso produtor da Nova Zelândia, país onde a tampa de rosca domina os rótulos, afirmou que só colocava rolhas nas garrafas que enviava em exportação para o Brasil. Ele fazia isso devido a um pedido de seu importador que lhe afirmou que os enófilos brasileiros consideravam vinhos com screwcap inferiores aos vedados com cortiça.

Trecho de Revista Adega, Uol.

Eu fui deitar muito frustrada. Primeiro com todo o universo por não ser inclusivo. Segundo, envergonhada como designer.

Peguei o Kindle e ri da ironia dos meus últimos livros lidos: As Leis da Simplicidade, O Obstáculo é o Caminho e Como Domar Um Elefante: 53 Maneiras de Acalmar a Mente e Aproveitar a Vida.

O último livro, inclusive, sugere praticar atenção plena fazendo atividades como escovar os dentes ou comer usando a mão que você não tem costume. Olha… nos meus primeiros dias minha atenção estava pleníssima! O cuidado em não lixar a gengiva escovando com a mão esquerda ou me machucar com o garfo era grande.

e quando há dois membros imobilizados?

Meu outro hobby pra distrair a cabeça é comprar coisas da internet e receber em casa. É aquele mimo comprado e inesperado, sabe? Mas essa alegria só durou até a primeira entrega pós-acidente.

“Oi, chegou encomenda pra você!”, Seu Miro falou pra mim no interfone. Torci pra que não fosse nada pesado ou largo demais.

Desci, peguei a caixa na portaria. Era pesada. Segurei com a mão esquerda, andei até o elevador e parei na frente dos botões. Pensei: como que eu vou pressionar o botão do meu andar sem usar as mãos? Usei a ponta da caixa como dedo. Errei o cálculo da trajetória e a caixa pressionou outro andar.

Ilustração de mulher carregando muitas caixas no elevador
Ilustra de Eduardo Porceli

Tentei de novo. Consegui. Esperei o elevador fazer a pausa desnecessária.

A porta do elevador abriu no meu andar. Fiquei de costas para a segunda porta de ferro e empurrei com o peso do corpo, porque ela é muito pesada.

Parei na frente da minha porta e refleti. Eu teria que deixar a encomenda no chão sujo pra então colocar a mão no bolso, pegar a chave, abrir a porta, fazer as gatas entrarem, pegar a encomenda, fechar a porta… foi o que fiz.

Como as pessoas passam por isso todos os dias com crianças? Como você carrega uma criança com a esquerda e compras com a direita, por exemplo? Ainda procura na bolsa as chaves do carro, abre a porta…

De novo, o quanto design inclusivo atenderia a todos e todas.

vocês podem dar zoom in pra mim?

Zoom, Meet, Figma, Miro e Slack sempre foram extensões dos meus braços. Vivo de atalhos. Mas então eu fiz uma fissura no meu osso e o jogo virou.

Slack

Durante o trabalho, mudei a posição do mouse para a esquerda e passei a digitar usando apenas o indicador esquerdo. Pensa no trabalho! Lembrei da minha mãe com tecnologia. O quanto consideramos esse uso diferenciado na hora de validar um protótipo?

Chegou um momento que eu passei a usar o Ditator do Macbook pra escrever por mim. Porém, as mensagens saíam robóticas e diferentes de como escrevo. Parecia que eu estava pistola com as pessoas.

Além, é claro, do maior problema: escrever errado o que eu dizia.

Captura de tela de conversa no Slack sobre como a ferramenta do Mac não entendia o que eu pronunciava
Captura de tela de conversa no Slack sobre como a ferramenta do Mac não entendia o que eu pronunciava

Outro momento eu falei gif e o Ditator escreveu bife. Rendeu risadas. O próprio nome Ditador não é lá muito compreensível.

Zoom e Meet

Quando me perguntavam algo nas reuniões eu precisava literalmente erguer a mão pedindo um tempo para a pessoa até eu chegar ao botão de desmutar usando o mouse com a esquerda.

Figma

Eu precisava fazer ajustes rápidos no layout, mas simplesmente não consegui. O básico de procurar o artboard certo, dar zoom in, selecionar um componente específico para ocultar a layer e arrastar outro componente não rolou com uma mão só.

Miro

Usando o Miro foi a mesma dificuldade. Eu não tinha a mesma agilidade em navegar pelo board e dar zoom in.

simule situações e/ou inclua pessoas de diferentes perspectivas em seu dia-a-dia

A reflexão que eu deixo é essa. Talvez nós, que projetamos experiências, deveríamos nos forçar a usar as lentes do outro. Que nós tenhamos recursos disponíveis pra simular contextos de uso diversos.

Ilustração de pessoas com imobilidades temporárias e permanentes
Ilustra de Eduardo Porceli

Exemplos práticos:

  • Editou um vídeo novo? Escute-o ao mesmo tempo que escuta o som de uma britadeira no YouTube. Você consegue ouvir sem legenda?
  • Adicionou gráficos? Veja o seu monitor a distância. Você consegue ler as informações que estão abaixo do gráfico de barras?
  • Desenhou uma interface de aplicativo? Use com a sua mão esquerda se você for destro ou a mão direita se for canhoto. Você consegue acessar facilmente os principais recursos?
  • Projetou uma assistente inteligente que reconhece sua voz? Use ela com algo que limite sua dicção. Ela consegue entender o que você diz?

Nesses 15 dias de imobilidade, eu passei a ver produtos e serviços tão comuns do meu dia-a-dia por uma ótica totalmente diferente. Vi pela ótica de um usuário iniciante, uma pessoa idosa, uma mãe com bebê ou uma pessoa com deficiência motora.

Reflita: será que a solução que você projetou é realmente a solução ou se tornou um problema para o outro?

Como as autoras Danila Gomes e Manuela Quaresma colocam: compreender a diversidade funcional é ter uma nova perspectiva das pessoas ao redor.

Entender que somos todos diferentes em limites e em habilidades é o primeiro passo para construir um olhar livre de barreiras.

👋

Um agradecimento especial ao Eduardo Porceli que é tanto um profissional como um pai incrível e dedicou o seu tempo livre para criar as ilustrações lindíssimas deste artigo.

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